A Via Crucis da Bienal , por Oscar D'Ambrosio

A Via Crucis da Bienal
texto de :Oscar D'Ambrosio*

É comum ouvir que enfrentar o térreo e os dois pavimentos da 29ª edição da Bienal de São Paulo, com suas 850 obras de 159 artistas, é uma espécie de Via Crucis. A expressão latina, que significa literalmente "caminho da cruz", é o trajeto seguido por Jesus Cristo carregando a cruz que vai do Pretório de Pilatos, onde ocorreu a condenação, até o Calvário, local da sua morte.

A prática física da Via Sacra consiste em percorrer simbolicamente esse percurso. Ela se cristalizou a partir do século XI, nas Cruzadas, quando os fiéis desejavam reproduzir, de alguma maneira no Ocidente, a peregrinação que ocorria ocorrera na Via Dolorosa de Jerusalém, onde acontecimentos narrados nas Sagradas Escrituras teriam se dado.

Ao longo do tempo, foram definidas as 14 estações, número adotado no século XVI. Cada uma delas corresponde a uma ação. Simbolicamente, a jornada está associada a uma meditação sobre o sofrimento de Cristo para salvar a Humanidade, Cada parada compõe um movimento mental dessa reflexão.

As veredas percorridas pelo nosso corpo na Bienal podem ser associadas a esse andar, ainda mais quando o tema escolhido pela curadoria está ligado às relações entre arte e política. Diversos artistas enfocam o assunto com maior literalidade e outros mergulham numa interpretação mais livre.

Há trabalhos de várias formas e concepções que lidam justamente com o corpo mutilado, transformado ou questionado dentro de um conceito amplo de política, que envolve as mais diversas relações sociais, abrangendo as esferas da luta, do preconceito e da reflexão sobre a vida. Vamos percorrer esse caminho.

1ª Estação: Jesus é condenado à morte

Andrea Geyer (Alemanha, 1971) - 1º Pavimento

Radicado nos EUA, cria uma instalação que, assim como ocorre na Primeira Estação, refere-se a um julgamento. Mas se Jesus é considerado injustamente condenado à crucificação hoje em dia, embora a decisão fosse considera sábia naquele momento, o artista toma como tema outro julgamento. Em Criminal Case 40/61: Reverb, reencena o julgamento de Adolf Eichmann, oficial alemão conhecido como o "executor chefe" do Terceiro Reich, sentenciado à única pena de morte da história de Israel. Em seis monitores colocados em ação simultaneamente, o mesmo ator interpreta seis personagens envolvidos no julgamento, que discutem alguma das mesmas questões que envolvem Jesus: o que são justiça e verdade, por exemplo. Se o texto da Bíblia nos informa sobre Jesus, transcrições do julgamento, matérias de revista e textos da filósofa Hannah Arendt, que escreveu sobre o caso, são seu ponto de partida para montar as falas.

2ª Estação: Jesus carrega a cruz às costas

Harun Farocki (República Tcheca, 1849) - 1º Pavimento

Pode haver maior peso do que carregar uma cruz, entendendo esta como um fardo, uma dor profunda por uma ação cometida ou sofrida. Os vídeos da série Serious Games deste cineasta que atua na Alemanha são o resultado do acompanhamento de um workshop organizado pelo ICT. Esse centro de pesquisa norte-americano sobre realidade virtual e simulação computadorizada desenvolve, entre outras ações, uma terapia em videogame para veteranos de guerra que sofrem de distúrbios de stress pós-traumático. É impressionante ver um militar contando, dentro de um procedimento de realidade virtual, como perdeu seu parceiro numa missão. De um momento para outro aquele que o acompanha foi mutilado por uma explosão. Portar na mente essa dor é como levar a cruz do mundo sobre os ombros.

3ª Estação: Jesus cai pela primeira vez

Guy Veloso (Brasil, 1969) - 2º Pavimento

A primeira queda de Jesus é o sinal inicial de como se sucumbe à dor. É exatamente o tema do sofrimento causado sobre o corpo que Guy Veloso trata em Penitentes. A diferença está em que Cristo é chicoteado e ferido pelos soldados, enquanto as imagens do fotógrafo paraense constituem uma seleção de representações de rituais de autoflagelação de católicos ortodoxos que ele acompanhou em cidades do interior do Ceará. O sacrifício e a dor desses fieis se mescla ao seu desejo de louvar ao Senhor. Se a agonia de Cristo tem o significado simbólico dentro do catolicismo de redenção de todos os que crêem no Senhor, o universo pesquisado por Veloso aponta para um mundo em que causar a dor a si mesmo faz parte de uma equação de elementos lúdicos e mórbidos de salvação.

4ª Estação: Jesus encontra a sua Mãe

Mario García Torres (México, 1975) - 1º Pavimento

O momento em que Jesus encontra Maria é um instante em que o filho reencontra a mãe, e a ordem se instaura pela afetividade. A desordem se organiza rapidamente, já que a Via Crucis continua. Essa questão do caos que se ordena graças a um reencontro é tratado de maneira criativa por Mario García Torres. Em Las variables dimensiones del arte, ele refaz com fotografias, artigos de jornal e comentários os fatos que envolveram a exposição Cien años de pintura francesa, realizada no início da década de 1960 no México e na Venezuela, país em que algumas obras foram roubadas pela guerrilha urbana para obter a atenção da mídia internacional para a sua causa. Temáticas como ausência, deslocamento - porque os militantes fotografaram as obras consagradas em seu poder como fundo de situações cotidianas, como dar banho em um bebê - e reencontro vão justamente da desorganização causada pela ausência dos trabalhos até o restabelecimento da normalidade. Mas se os quadros (form devolvidas) foram devolvidos, nossa Via Crucis continua.

5ª Estação: Simão Cirineu ajuda a Jesus

Nástio Mosquito (Angola, 1981) - 1º Pavimento

O fato de Simão Cirineu ajudar Jesus a carregar a cruz mostra como a jornada de sofrimento de Cristo simbolicamente deve ser compartilhada pela humanidade. Uma pessoa comum auxiliar nesse andar reforça a relação entre Deus e os homens, confirmando a aliança entre criador e criatura. Essa questão do poder do coletivo e da humildade de rever sua própria posição perante o mundo, pensando não só no que se é, mas naquilo que pensam de nós é o centro da animação My African Mind. Trata-se de uma montagem em vídeo que utiliza material de arquivo imagético da história do continente africano, do início do século XX aos dias de hoje. Surgem ali estereótipos, conflitos, desastres e conquistas numa edição acelerada próxima aos quadrinhos e ao videoclip. A presença da voz, com características histriônicas, serve de contraponto ao que é exibido. Provoca disjunções de sentidos ou enfatiza ironias. Toda essa pesquisa com elementos gráficos e sonoros estabelece elos criativos com o mundo contemporâneo, revisitando o passado escravista e colonial da África e sua posição nas discussões do mundo atual. Tudo isso é feito com humor, ironia e deboche, mas sem simplismo. Os laços que unem Mosquito ao seu povo são os mesmos que unem Jesus aos homens, marcados por um profundo respeito e ampla compreensão.

6ª Estação: Verônica limpa o rosto de Jesus

José Antonio Vega Macotela (México, 1980) - 1º Pavimento

Ao ver o sofrimento de Jesus, Verônica vai até ele e lhe limpa o rosto. Ela abre mão de seu tempo para realizar uma ação para reconfortar aquela pessoa que está sofrendo no ato de carregar a cruz. Ela investe parte de sua energia nessa atitude e recebe uma dádiva: na toalha que usou, fica impresso o rosto de Cristo. O projeto Time Divisa de Macotela lida também com um sistema peculiar de trocas. Ele trabalhou durante três anos e meio com detentos da unidade Carcerária de Santa Marta Acotila, na Cidade do México. Semanalmente, nas suas visitas, estabeleceu, com 365 deles, número que funciona como símbolo de um ano, ou seja, de um ciclo de uma vida, um processo de negociação. Privados da liberdade, mas ainda capazes de administrar parte do próprio tempo, eles pediam a Macotela que realizasse, fora da prisão, algum pedido. Em troca, cada um fazia um projeto artístico em comum acordo com o artista, usando nele seu próprio corpo e registrando experiências em desenhos ou objetos. Foi estabelecida assim uma relação de afetos como a de Verônica ao enxugar o sangue e o suor de Jesus. Ela recebeu na toalha a impressão eterna de uma imagem, como Macotela ganhou dos presidiários objetos com os quais realiza a sua instalação na Bienal.

7ª Estação: Jesus cai pela segunda vez

Sophie Ristelhueber (França, 1949) - 1º Pavimento

As quedas de Jesus apontam para a dor, como já dissemos. Essa sensação pode se mais explícita, como as manifestadas por imagens que afetam o corpo, ou mais sutis, como as proporcionadas por fotografias em que não surgem pessoas em situações de dor, mas ambientes divididos e impossíveis de se comunicar pela guerra. As fotografias da série WB, de Sophie Ristelhueber, relatam uma viagem à Cisjordânia. São selecionadas circunstâncias plásticas com marcas não explícitas dos conflitos da região, como barreiras realizadas pelo exército de Israel para impedir a circulação de automóveis palestinos ou construções de pilhas de pedra, semiencobertas por relva, que interrompem a passagem e integram a paisagem rodoviária da região. Distribuídas por diversos lugares da Bienal, as imagens alertam que as quedas de Jesus são como os tropeços do mundo em que vivemos. Situações de conflito e de dificuldade em que a arte se não indicar soluções pelo menos pode lançar alertas. As ruínas da região pesquisada são como as marcas no corpo de Jesus dilacerado.

8ª Estação: Jesus encontra as mulheres de Jerusalém

Alfredo Jaar (Chile, 1956) - 2º Pavimento

Assim como Jesus encontra as mulheres de Jerusalém, este artista chileno, radicado em Nova York, conheceu uma pessoa que mudou a sua vida. A instalação The Eyes of Gutete Emerita cristaliza o olhar de uma mulher que testemunhou a chacina do seu marido e dois filhos, assassinados, assim como mais 398 pessoas da minoria Tutsi que foram emboscados e mortos, em 1994, na Igreja Ntarama, perto da capital de Ruanda, Kigali. Na sua obra, ele empilhou cerca de um milhão de slides sobre uma mesa de luz, lembrando o número aproximado de vítimas dos conflitos étnicos naquele país até 2000. Todas as imagens são iguais: um close na dor que se distingue pelos olhos de uma sobrevivente que, como as mulheres de Jerusalém, verão e sofrerão com a dor de alguém muito querido.

9ª Estação: Terceira queda de Jesus

Tobias Putrih (Eslovênia, 1972) - 2º Pavimento

O artista esloveno dialoga com as quedas de Jesus pela forma como mostra uma sociedade em clima de destruição, onde os restos predominam. O espaço que cria para a projeção de vídeos é uma estrutura modular de madeira e papelão que toma como base as colunas do Palácio da Alvorada. A leveza do projeto de Oscar Niemeyer cede lugar a uma casca protetora e a um ambiente interno lúgubre, uma espécie de arquibancada resultante de um processo de guerra e destruição, de onde ficam apenas restos. Trata-se de um local que funciona como um dos terreiros propostos na Bienal, ou seja, âmbitos de discussão, debate e descanso. É ali que a reflexão de mais esta estação, a da terceira queda de Jesus - e por extensão, a de todos nós - pode ser feita.

10ª Estação: Jesus é despojado de suas vestes

Carlos Garaicoa (Cuba, 1976) - 1º Pavimento

?O conjunto Las joyas de la Corona traz uma reflexão interessante sobre as ditaduras militares e governos autoritários. O ponto de vista não é o do sofrimento humano, mas o dos desenhos arquitetônicos dos locais onde a violência foi praticada. Se Jesus foi despojado de suas vestes, que se tornaram, como se fossem jóias, objeto de jogo de dados entre os soldados, Carlos Garaicoa transforma em miniaturas de prata fundida oito edifícios, símbolos de poder estatal, construídos em diferentes partes do mundo: Estádio do Chile, KGB, Stasi, Base Naval de Guantánamo, DGI, Pentágono, Escuela de Mecânica de La Armada e Villa Marista. Os locais, marcados pela violência e tortura, tornam-se objetos valiosos pela prata de que são feitos. Do mesmo modo, os andrajos de Jesus ganham magnitude de objeto de desejo.

11ª Estação: Jesus é pregado na cruz

Claudia Joskowicz (Bolívia, 1968) - 1º Pavimento

Desde o começo da Via Crucis, sabemos que Jesus irá morrer pregado na cruz. Situação análoga ocorre no vídeo Round and Round and Consumed by Fire, referência ao filme Butch Cassidy and the Sundance Kid, de 1969, dirigido por George Roy Hill. Ela reencena, em uma única tomada panorâmica, lenta e circular, o cerco da polícia boliviana aos anti-heróis norte-americanos. O ritmo narrativo estabelece uma ansiedade, pois esperamos que a qualquer momento ocorra o desfecho que todos conhecemos. No entanto, a expectativa, ao contrário do que acontece na Via Crucis, é quebrada. O filme termina sem a morte anunciada. A ação se interrompe logo antes da execução dos simpáticos criminosos. Essa ruptura da visualidade do final esperado incomoda e fascina.

12ª Estação: Jesus morre na cruz

Daniel Senise (Brasil, 1955) - 2º Pavimento

A obra O sol me ensinou que a história não é tudo, consiste em placas modulares espessas e esbranquiçadas elaboradas com papel reciclado feito a partir de catálogos e folhetos de arte. A água e a cola formam as massas compactas e sólidas que alertam para uma morte do texto escrito e o renascimento de uma superfície que guarda pontos de cores. Esse morrer com a possibilidade de um nascer marca a caminhada do nosso corpo ao visitar a Bienal.

13ª Estação: Jesus morto nos braços de sua Mãe

Zanele Muholi (África do Sul, 1972) - 2º Pavimento

Quando se pensa na figura de Maria abraçando Jesus já morto, vem logo à mente as tradicionais imagens da Maria Dolorosa, repletas de feminilidade e muitas vezes de um certo ar de sedução e mesmo de êxtase. A fotógrafa Zanele Muholi traz, em fotografias, que evocam, em diversos momentos, poses já clássicas. Mulheres homossexuais de seu país. Esse trabalho artístico tem origem na sua atuação junto ao Forum for the Empowerment of Women, uma organização de lésbicas negras na província de Gauteng, e na revista on-line Behind the Mask, que aborda a temática homossexual na África do Sul. Surge assim um ativismo visual e de gênero para dar voz e visualidade a essas mulheres na sociedade contemporânea sul-africana. Vítimas de preconceito, agressividade, estupro e assassinato, elas, por meio da série Faces and Phases, não traz a saída fácil da dor da violência explícita, mas lida de maneira nobre e esplendorosa com retratos. Cada um celebra um existir pela resistência em diversas atividades profissionais, seja no esporte, na arte, na ciência ou no direito. Cada uma expressa assim seu lado Mãe Dolorosa no gesto e no olhar.


14ª Estação: Jesus é enterrado
Steve McQueen (Inglaterra, 1969) - 2º Pavimento

Enterrar alguém significa depositar um corpo estático em algum lugar, onde irá deteriorar. Existe aí um jogo entre a paralisação que o falecimento acarreta e a mecânica do tempo que age sobre a matéria inerte. Steve McQueen lida com questões semelhantes (semelhante) no vídeo Static. A partir de um helicóptero filma a Estátua da Liberdade em Nova York. A câmera circunda essa imagem parada no tempo e no espaço, mas as imagens realizadas de maneira próxima mostram detalhes de um corpo escultórico em deterioração. Embaixo das axilas e nas laterais o desgaste do tempo deixa as suas marcas. O ícone da liberdade norte-americana, com sua chama de liberdade erguida com o braço direito revela as suas fraquezas. Ela, embora ao ar livre, ganha um ar de fragilidade e de ausência de vida. Trata-se de um símbolo, de certa forma, morto e exposto ao ar livre, mas que pode ressurgir a qualquer momento, pois sua atitude valente e positiva é um alerta.

A Via Crucis proposta é um andar em meio a uma multidão de obras. As múltiplas visões de um julgamento, o sofrimento pela perda, a flagelação do corpo, a possibilidade do reencontro, a revisão da história, a incomunicabilidade, a percepção da morte, o espaço revisitado sem glamour, a ressignificação da violência, a quebra de expectativas, o fim da arte e da vida, a grandiosidade das diferenças e a visão dinâmica do que parece estático são temas da arte contemporânea que constituem um caminhar que, tanto como uma Via Crucis pela Via Dolorosa ou por suas simbolizações em diversos locais de todo o mundo, guardam um mesmo sentido: uma ritualização que ordena o nosso caos interior e lhe dá um novo e fascinante significado.

Condenado à morte, psicologicamente afetado, fisicamente dolorido, reconfortado, auxiliado, recompensado, marcado, transformado, questionado, reavaliado, sempre apto a surpreender, consciente da própria efemeridade, majestático e frágil, o corpo de Jesus Cristo na Via Crucis faz o mesmo percurso da arte: fenecerá, mas tem a infinita capacidade da ressurreição.



*Oscar D’Ambrosio, jornalista (ECA-USP), mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de São Paulo, é crítico de arte e integra a Associação Internacional de Críticos de Artes (Aica - Seção Brasil). Bacharel em Letras (Português e Inglês), é coordenador de imprensa da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp e publicou, entre outros, Os pincéis de Deus: vida e obra do pintor naïf Waldomiro de Deus e O Van Gogh feliz: vida e obra do pintor Ranchinho de Assis (ambos pela Editora Unesp) e Mito e símbolos em Macunaíma (Editora Selinunte). Escreveu para a Coleção Contando a arte de..., da Editora Noovha América, livros sobre os artistas plásticos Adelio Sarro, Aldemir Martins (em parceria com Rubens Matuck), Bittencourt, Caciporé, CACosta, Claudio Tozzi, Da Paz, Di Caribé, Elias dos Bonecos, Estevão, Garrot, Gisele Ulisse, Gustavo Rosa, Jocelino Soares, Jonas Mesquita, Juan Muzzi, Marcos de Oliveira, Maroubo, Ranchinho, Rubens Matuck, Peticov, Romero Britto, Sima Woiler, Sinval e Waldomiro de Deus.

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